Parece-me que estamos prontos para dar início. Talvez ainda haja alguns ajustes a serem feitos em relação aos comentários mas acho que podemos fazer isso ao longo das trocas que certamente vão se dar por aqui.
Comecemos com Marie Cardinal, escritora argelina que escreve em francês, nascida em 1929 e "autora de dez romances de grande sucesso na França, em outros países da Europa e nos Estados Unidos", de acordo com uma das orelhas de seu livro Palavras para dizer, publicado no Brasil pela editora Trajetória Cultural, em 1990. E, até onde sei, o único de seus livros publicados aqui. Um livro maravilhoso e provavelmente muito difícil de ser encontrado hoje, dado o tempo que nos separa da data de sua publicação.
O livro é um relato autobiográfico de sete anos de análise da autora que "encontra as palavras para narrar de forma envolvente, sem medo o que antes considerava impossível". De acordo com suas próprias palavras na primeira orelha do livro, "A análise não pode ser escrita. Seriam necessárias milhares de páginas para exprimir infinitamente o nada... a matéria em gestação, a gestação do pensamento..."
Ajudada pela beleza da tradução de Wanda Caldeira Brant, para a língua portuguesa, parece que, de algum modo, ela conseguiu. O que fez Ingmar Bergman dizer: "Um dos livros mais extraordinários que já li. Jamais poderia ter sido escrito por um homem". Vale a pena ler alguns trechos:
"... fico sempre maravilhada frente ao admirável trabalho que se opera entre o consciente e o inconsciente. Abelhas laboriosas. O inconsciente indo procurar, nas profundezas da vida, as riquezas que me eram próprias, colocando-as numa margem de meu sono, e a consciência, na outra margem, de longe, inspecionando a novidade, apreciando-a, deixando-me senti-la ou rejeitando-a. Assim, às vezes irrompia em minha realidade uma verdade fácil de compreender, simples, clara, mas que só me aparecia quando eu estava em condições de acolhê-la. Meu inconsciente, há muito tempo, tinha preparado o terreno, mostrando-se à consciência, aqui e ali, por palavras, imagens, sonhos nos quais não prestara atenção. Até o dia em que, amadurecida para receber a nova verdade, podia percorrer o caminho que em poucos segundos levava a ela. Isso tinha acontecido em relação à minha violência, que só enxerguei no momento em que já podia suportá-la." [p.226]
"... Silêncio, porque o essencial está expresso." [p.229]
"Achava que as palavras podiam ser minhas aliadas ou minhas inimigas, mas que de qualquer forma eram estranhas para mim. Eram utensílios fabricados há muito tempo e colocados à minha disposição para me comunicar com os outros. (...) Os homens tinham inventado milhões de palavras... que exprimiam o universo em sua totalidade. Nunca tinha pensado nisso, nunca tinha dado conta de que toda mudança de palavras era um fato precioso, representava uma escolha. As palavras eram estojos, todas continham uma matéria vital.
"As palavras podiam ser veículos inofensivos, carrinhos elétricos de diversas cores que se trombavam na vida diária, soltando feixes de faíscas que não machucavam.
"As palavras podiam ser partículas vibráteis animando a existência ou células realizando fagocitose, ou glóbulos formando uma liga para engolir, com avidez, micróbios e rechaçar as invasões de corpos estranhos.
"As palavras podia ser feridas ou cicatrizes, podiam parecer um dente estragado num sorriso aberto.
"As palavras podiam ser também gigantes, rochas enfiadas profundamente na terra, sólidas, graças às quais era possível atravessar cachoeiras.
"Enfim, as palavras podiam ser monstros, os SS do inconsciente, detendo o pensamento dos vivos nas prisões do esquecimento." [p.231]
"... As palavras, esses estojos de vida, estão elas próprias contidas, quando escritas, nos estojos das letras. Cada tipo de caractere tem um estilo próprio que comunica à palavra que grafa e à matéria que está na palavra. Cada povo inventa caracteres com os quais se parece. Os alemães têm alfabetos pesados e enérgicos feitos para textos fortes, análises rigorosas. Os ingleses têm letras precisas e loucas, feitas para a liberdade bem calculada. Os americanos têm caracteres novos e tecnocráticos feitos e pensados por robôs. Os latinos têm caracteres bonitos feitos para a sutileza, o amor e as lágrimas..." [p.236]
Alguém já leu? Quer comentar? Há outro techo que despertou atenção? Que lhes parece? Se alguém ficar interessado, posso emprestar o exemplar que tenho. Mas a devolução é obrigatória.
terça-feira, 10 de março de 2009
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Estou na metade da leitura deste livro e confesso estar apaixonada pelo estilo de narrativa da autora.
ResponderExcluirOra leio como se estivesse a escutando no consultório, ora me identifico com alguma passagem enquanto analisante.
O livro é tão rico quanto uma boa supervisão clínica. É realmente uma pena que não existam mais exemplares nas livrarias.
Estou lendo uma cópia de um xerox de uma colega de curso. Seria muito bom ter um exemplar para reler em outro momento, quem sabe se dar conta de detalhes que passaram despercebidos...
Quem sabe não aparece uma nova edição?
Olá, Caroline,
ResponderExcluirQue prazer... Há tempo ensaio voltar a esta sala, que me parece estar fechada há já bastante tempo, e não crio coragem.
Seu comentário, no entanto, me leva a abrir novamente as portas deste espaço, para, quem sabe, voltar a conversar com leitores que desejem comentar suas leituras, ou as minhas. Talvez até indicar novas leituras, comentando a respeito do que leem.
Quanto ao "Palavras para dizer", que você comenta, também acho uma pena que a editora não o ponha novamente no mercado. Entretanto, acho que você ainda pode achar algum exemplar usado na estante virtual, um site que congrega milhares de sebos do Brasil, onde você pode consultar e comprar tanto livros novos quanto livros usados a preços, às vezes, melhores do que o de livrarias normais. O endereço é:
www.estantevirtual.com.br.
Boa sorte.
Obrigado por seu comentário.
Olá! Como eu consigo este livro para ler???
ResponderExcluirIsabel Vargas
Olá, Isabel Vargas,
ResponderExcluirAgradeço seu interesse e seu comentário. Pelo visto consegui despertar seu interesse pelo livro. Talvez porque você seja da área da Psicologia? Não importa. Tudo bem. De fato, acredito que, além da beleza do texto, para quem curte literatura, ele diz muito também aos profissionais da área da psicologia.
Quanto à encontrar o livro para lê-lo, uma vez que ele é um livro antigo que, acredito, não foi re-editado, você pode tentar acessar o seguinte site: http://estantevirtual.com.br/
É bem provável que você o encontre lá.
Obrigado pelo contato.