terça-feira, 31 de março de 2009

"Uma declaração de amor aos livros"

Conforme o prometido antes, estou de volta para falar do livro Ex-Libris - Confissões de uma leitora comum, de Anne Fadiman, o segundo imperdível, em cuja capa lê-se: "uma declaração de amor aos livros". Mais ou menos o que gostaria de que este espaço/blogue se tornasse. Menos por interesse em um sucesso estrondoso para ele [o que não seria mau], ou para influenciar leitores ou lhes receitar leituras. Mas muito mais para permitir que leitores, e leitoras, comuns possam manifestar suas preferências, possam falar de suas relações com os livros que amam e que guardam em suas casas ou em seus corações e mentes apenas porque lhes revelaram mais de si mesmos(as), das pessoas e do mundo em que vivem e vivemos todos.

E é isso exatamente que me despertou o interesse pelo livro de Anne. Na primeira orelha, o editor traz as perguntas: "você dobra as páginas dos livros para marcar onde parou a leitura? Quais livros leva para a cama? Dedicatórias esquecidas em um livro usado provocam em você uma emoção especial?" E diz mais, que " a relação de um leitor com um livro pode ser tão íntima, complexa e delicada quanto entre duas pessoas. Para a autora destes deliciosos ensaios [são dezoito, e se deixam ler saborosamente], assim como para muitos leitores inveterados e apaixonados, seus livros preferidos tornaram-se capítulos de sua história pessoal. Neles estão anotações, lágrimas, cheiros e vincos que recontam momentos e lugares passados".

Mas vamos dar espaço para Anne nos falar um pouco do que o livro reserva para nós. Vou citar um trecho do prefácio dela:

Quando o romancista irlandês John McGahern era criança, suas irmãs desamarraram e retiraram um de seus sapatos enquanto ele lia. Ele não se mexeu. Colocaram um chapéu de palha em sua cabeça. Nenhuma reação. Só quando tiraram a cadeira de madeira na qual estava sentado foi que, como ele diz, "acordou do livro".

"Acordar" é o verbo correto, porque existe um certo tipo de criança [
e eu diria que de adulto também] que acorda de um livro como de um sono profundo, nadando através de camadas de consciência em direção a uma realidade que parece menos real do que o estado de sonho que ficou para trás. Eu fui esse tipo de criança. Depois, na adolescência, influenciada por Hardy [Thomas], não conseguia me apaixonar por um garoto sem classificá-lo como Damon ou Clyn. Mais tarde ainda, dormia com meu marido (um Clyn) numa cama cheia de livros, esperando que a chegada de nosso primeiro filho se parecesse com a cena do nascimento de Kitty em Anna Karenina, mas temendo que pudesse se assemelhar mais ao parto da senhora Thinguimmy em Oliver Twist.

Comecei a escrever Ex-Libris quando me ocorreu ser curioso que se escreva sobre livros quase sempre como se fossem torradeiras. Esta marca é melhor do que aquela? Por 24 dólares e 95 centavos, esta torradeira é um bom negócio? Não há nada sobre como poderei me sentir a respeito de minha torradeira daqui a dez anos, e nada sobre o carinho que ainda posso nutrir pela antiga. Esse modelo de leitor como consumidor - que eu mesma já incentivei em muitas críticas de livro - omite com precisão o que considero a alma da leitura: não é se desejamos comprar um livro novo, mas como mantemos a ligação com os velhos, aqueles com os quais convivemos há anos, cuja textura, cor e cheiro se tornaram tão familiares para nós como a pele de nossos filhos.

Em The Common Reader [O Leitor Comum], Virginia Woolf (que tomou o título de uma frase de Samuel Johnson em Life of Gray [A Vida de Gray]) escreveu sobre "todas essas salas, modestas demais para serem chamadas de bibliotecas, embora cheias de livros, onde a atividade da leitura é exercida por particulares". O leitor comum, diz ela, "difere do crítico e do acadêmico. É menos educado, e a natureza não o dotou muito generosamente. Lê mais por um prazer próprio do que para transmitir conhecimentos ou corrigir a opinião dos outros. Acima de tudo, é guiado por um instinto de criar para si mesmo algum tipo de totalidade, a partir de qualquer miscelânea que encontre". Este livro é a totalidade que tentei criar em cima da quantidade de miscelâneas que povoa minhas estantes abarrotadas.


E por aí vai... Espero que isto seja suficiente para lhes dar uma ideia do que falo e daquilo de que Ex-Libris trata. Apenas para ilustrar, a impressão que tive de sua leitura foi a de que este livro era o instrumento perfeito para eu mostrar a minha mulher, a fim de que ela tivesse um pálida noção de como me sinto com relação aos livros. Porque ela muitas vezes reclama da quantidade de livros espalhados pela casa ou fora de seu lugar nas estantes. Agora menos.

segunda-feira, 30 de março de 2009

Dois livros imperdíveis.

Eu não poderia dar continuidade a meus comentários neste espaço, sem falar, de dois livros muito interessantes, em meu modo de ver, para quem gosta de ler e de livros. E para quem quer que deseje aprender a gostar cada vez mais de ler e de livros. É claro que falar destes dois livros é apenas uma escolha aleatória minha e que eles podem não despertar o mesmo interesse que despertaram em mim em nenhuma das pessoas que me leem.

O primeiro deles, Como um Romance, é de Daniel Pennac, autor francês que publicou seu primeiro livro em 1973. Como um Romance é "um ensaio delicioso sobre a leitura, 'esse ato íntimo, alquimia privilegiada e misteriosa entre autor e leitor'". Na primeira orelha do livro, o editor diz que Daniel Pennac, "do alto de sua experiência de professor, embalado num estilo a um só tempo irônico e poético... investiga as chaves para o mundo da leitura, esse desconhecido de um número expressivo de possíveis leitores". Na segunda, revela que o autor, "lendo para seus alunos, fez com que eles percebessem que Dostoievski, Tolstoi, Calvino, Gabriel Garcia Marquez, John Fante, todos, qualquer que seja a forma por eles escolhida, as palavras que utilizaram, contam uma história. Para entendê-la, basta voltar ao despudor da primeira infância de querer tudo descobrir, tudo ouvir".

Um excerto:

O verbo ler não suporta o imperativo. Aversão que partilha com alguns outros: o verbo amar... o verbo "sonhar"... Bem, é sempre possível, é claro. Vamos lá: "Me ame!" "Sonhe!" "Leia!" "Leia logo, que diabo, eu estou mandando você ler!"
- Vá para o seu quarto e leia!
Resultado?
Nulo.
Ele dormiu em cima do livro. A janela, de repente, lhe pareceu imensamente aberta sobre uma coisa qualquer tentadora. Foi por ali que ele decolou. Para escapar ao livro. Mas é um sono vigilante: o livro continua aberto diante dele. E no pouco que abrimos a porta de seu quarto, nós o encontramos sentado junto à escrivanhinha, seriamente ocupado em ler. Mesmo se nos aproximamos na ponta dos pés, da superfície de seu sono ele nos terá escutado chegar.
- Então, está gostando?
Ele não vai nos responder que não, isto seria um crime de lesa-majestade. O livro é sagrado, como é possível não gostar de ler? Não, ele vai dizer que as descrições são longas demais.
Tranquilizados, voltamos ao nosso aparelho de televisão. E é até possível que esta reflexão suscite um apaixonante debate entre nós e os outros como nós...
- Ele acha as descrições longas demais. É preciso entender, estamos no século do audiovisual, evidentemente os romancistas do século dezenove tinham que descrever tudo...
- Mas isto não é razão para pular a metade das páginas.
Não vamos nos cansar, ele voltou a dormir.

Há ainda que destacar o estabelecimento por Pennac dos 10 direitos imprescritíveis do leitor, fixados e explicados em títulos de subcapítulos na parte final do livro. São eles: 1) O direito de não ler. 2) O direito de pular páginas. 3) O direito de não terminar um livro. 4) O direito de reler. 5) O direito de ler qualquer coisa. 6) O direito ao bovarismo (doença textualmente transmissível). 7) O direito de ler em qualquer lugar. 8) O direito de ler uma frase aqui e outra ali. 9) O direito de ler em voz alta. 10) O direito de calar.

O segundo livro se chama Ex-Libris - Confissões de uma Leitora Comum e foi escrito por Anne Fadiman. Mas, para que esta postagem não fique muito longa, não se torne cansativa e desinteressante, vou falar dele noutra ocasião.

sexta-feira, 27 de março de 2009

Conhecendo poetas e escritores

Na semana passada, compareci a uma sessão de lançamento de uma antologia de poesia contemporânea. A sessão começou com uma apresentação do professor Ivan Marques, que escreve um pósfácio para a antologia e, presentes, sete dos treze poetas destacados pela antologia fizeram a leitura de alguns de seus próprios poemas. Além deles também estavam os organizadores e amigos e familiares dos poetas e amigos e amigas dos amigos e dos familiares dos poetas. Enfim, uma reunião digna de registro neste espaço, entre outras coisas, por se tratar de pessoas amigas que cultivam laços fortes com livros, leituras e literatura.

Quase posso dizer que conheço pessoalmente todos os presentes. Jornalistas, escritores, poetas, professores e pessoas ligadas à literatura, aos meios de comunicação e à cultura. E esta abertura é apenas um pretexto para um comentário que fiz a alguém na ocasião, ao lembrar que, na época em que era estudante, os escritores, poetas, autores e as pessoas que, em geral, apareciam ou eram citadas nos livros, eram deuses, ou semi-deuses. Não me passava jamais pela cabeça, e acho que nem pela cabeça de nenhum de meus colegas, que fosse possível algum dia ter contato próximo com alguém que tivesse escrito uma poesia que aparecera publicada em um livro. Ou com alguém que tivesse escrito um livro inteiro, de poesias ou mesmo prosa.

Anos depois, em Porto Alegre, visitei uma das edições da famosa Feira do Livro e fiquei entusiamadíssimo com o fato de ter conseguido o autógrafo de dois grandes escritores para os livros que comprara. Darcy Ribeiro autografou para mim seu livro Ensaios Insólitos e Josué Guimarães, grande escritor gaúcho, autografou seu Camilo Mortágua, um livro que sempre merece ser lido e relido. Para quem não o conhece, imagine-se um velho que, ao entrar em uma sala de cinema para assistir a um filme sobre Cleópatra, percebe, ao se iniciar a sessão, que o que se passa na tela não é nada mais, nada menos, do que uma narrativa pelas imagens que retrata toda a sua vida.

Na primeira orelha da capa original desta primeira edição autografada que possuo, o editor nos convida à leitura dizendo que Josué Guimarães, em seu novo romance, nos oferece "um painel inédito de sua ficção, contando de maneira apaixonante a decadência de uma família de pecuaristas, da fronteira gaúcha, com todas as suas misérias e grandezas". Diz ainda que, de certa forma, a "história de Camilo Mortágua reproduz o drama de dezenas de famílias gaúchas que, baseando seus rendimentos na exploração de rebanhos na fronteira, levaram suas vidas luxuosas na capital do Estado, num fausto que fez época e que, com o passar do tempo, terminou por arruiná-las". Uma narrativa que mescla fantasia e realidade de homens e mulheres "que se movimentam com independência na trama de suas vidas" e que poderia perfeitamente se transformar em roteiro para um filme excelente, como tantos saídos da ficção de nossos autores preferidos.

Bem, divaguei um pouco... Voltemos ao lançamento. Apenas para informar a quem me lê e se interessa por poesia. A antologia, publicada pela editora Scipione, se chama Traçados Diversos e traz poemas de Fabrício Corsaletti, Antonio Cicero, Fernando Paixão, Donizete Galvão, Annita Costa Malufe, Heitor Ferraz Mello, Ruy Proença, Fabio Weintraub, Ricardo Aleixo, Arnaldo Antunes, Chacal, Bruna Beber e Fabiano Calixto. Vale a pena destacar um poema do Ruy, de que gosto muito, a respeito do qual é possível se fazer uma profunda reflexão. O poema se intitula Tiranias e diz o seguinte:

antigamente/diziam: cuidado,/as paredes têm ouvidos

então/falávamos baixo/nos policiávamos

hoje/as coisas mudaram:/os ouvidos têm paredes

de nada/adianta/gritar

Aproveito aqui ainda para dar as boas vindas à Margarida Constantino entre nós. Espero que ela possa permanecer conosco por muito tempo e trazer suas contribuições, indicando-nos livros e leituras.

quinta-feira, 19 de março de 2009

E se o livro não for interessante?

Quando começas a ler um livro, faze-o por quê? Ou, em outras palavras, o que te leva a ler um livro? A indicação de alguém, a resenha do livro em jornais, revistas ou catálogos de livrarias e sites? De que maneira determinas a leitura que vais fazer? Lês apenas livros que tratam de um assunto ou tema de teu interesse? Ou és curioso(a) a ponto de escolher um livro por seu título, por sua capa? Já chegaste a ler um livro porque alguém falou mal dele, ou do autor?

Quando começas a ler um livro gostas de saber de antemão do que ele trata? De que fala? Isto é, já tiveste conhecimento do livro por aquilo que a crítica e a imprensa falaram dele? Há um autor de quem esperas ansiosamente o livro seguinte? Há um autor de quem não queres nem ouvir falar?

E se, ao começar a ler um livro, ele se mostrasse surpreendente, com idas e vindas abruptas, com mudança de cenários e temas, revelando-se até mesmo ser bastante diferente daquilo que esperavas? Mais, não se revelando em absoluto, mostrando uma surpresa e uma reviravolta atrás de outra? Indo muito além daquilo que costumas esperar de um romance?

Estas perguntas todas são apenas retóricas, uma vez que ninguém vai respondê-las. Ou melhor, uma vez que não espero nenhuma resposta para elas. São apenas uma provocação, um convite a que penses com mais vagar a respeito dos motivos pelos quais lês, o que lês e o que gostas de ler. Elas também têm a intenção de despertar tua curiosidade e/ou interesse para um escritor italiano muito conhecido. Particularmente para um de seus livros. Aquele intitulado Se um viajante numa noite de inverno.

Um livro típico de um autor de gênio a respeito do qual o próprio Italo Calvino disse tratar-se "de um romance sobre o prazer de ler romances; [um romance no qual] o protagonista é o Leitor, que por dez vezes recomeça a ler um livro que, em razão de vicissitudes alheias a sua vontade, ele não consegue terminar. Tive, portanto, de escrever o início de uma dezena de romances de autores imaginários, todos de algum modo diferentes de mim e diferentes entre si: um romance todo de desconfianças e sentimentos confusos; outro todo de sensações densas e sanguíneas; um introspectivo e simbólico; um existencial revolucionário; um cínico-brutal; um de manias obsessivas; um lógico e geométrico; um erótico-pervertido; um telúrico-primordial; um apocalíptico-alegórico. Mais que identificar-me com o autor de cada um dos dez romances, procurei identificar-me com o leitor - representar o prazer da leitura deste ou daquele gênero, mais que o texto propriamente dito. Em alguns momentos, cheguei a sentir que a energia criativa desses dez autores inexistentes me penetrava. Mas, sobretudo, tentei evidenciar o fato de que todo livro nasce na presença de outros livros, em relação e em confronto com outros livros".

Na última capa o editor diz o seguinte: "Este romance que está em suas mãos é uma obra-prima de engenhosidade, humor e inteligência. Ele contém histórias de amor, suspense, conflito, mistério, erotismo, filosofia, guerra, realismo fantástico. É um daqueles livros que mantém viva a expectativa criada desde o início e obriga o leitor a continuar a leitura, na busca da satisfação plena do fim. Mas cuidado, leitor amigo: estes trezentos framas de papel impresso podem ser traiçoeiras, levá-lo por caminhos angustiantes e deixá-lo com grandes frustrações. São como um campo minado: avance atento, perceba o jogo de espelhos, fique de olho nos detalhes, para conseguir chegar ao gozo final".

Boa leitura!

sexta-feira, 13 de março de 2009

Para se ficar "sempre brabo de alegre"

Esta postagem tenta oferecer resposta a uma pergunta feita pessoalmente por meu amigo Heitor - olha eu expondo o amigo às luzes da rede -, o htsj, que aparece aqui, até agora, como o único seguidor deste blogue, o que não significa que não haja milhares deles, anônimos, tímidos, retraídos, sei lá... Ou que ele talvez seja o único com coragem e capacidade para romper todos os obstáculos impostos pelo Blogger a quem deseja se manifestar, ou oferecer sua opinião aos leitores e ao autor destas postagens.

Brincadeiras à parte, para responder à pergunta do Heitor, a respeito da alegria, indiquei a ele a leitura de um trecho do conto Campo Geral, de Guimarães Rosa, em que ele fala de Miguilim, menino dado a tristezas, em um momento em que ele já tinha meio que perdido "o gôsto de se esconder, de se apartar às vezes da companhia dos outros, conforme tanto de-primeiro êle apreciava. Mas, agora, de repente achava que, se sòzinho, então - por certo encoberto modo - aí era que êle era mais sabido de todos, mais enxergado e medido. ... Queria que tudo fôsse igual ao igual, sem esparrame nenhum, nunca, sem espanto novo de assunto, mas o pessoal da família cada um lidando em suas miúdas obrigações, no usozinho. Que - se ele mesmo desse de viver mais forte, então puxava perigo de desmanchar o esquecimento de Deus...

O companheiro e confidente de Miguilim no conto era seu irmão Dito a quem Miguilim consultava muitas vezes. Mas mesmo depois que o Dito morre, lá na frente, com a história adiantada, Miguilim, lembrando das coisas que ele dizia, comenta que "... O Dito dizia que o certo era a gente estar sempre brabo de alegre, alegre por dentro, mesmo com tudo de ruim que acontecesse, alegre nas profundas. Podia? Alegre era a gente viver devagarinho, miudinho, não se importando demais com coisa nenhuma..."

Acho que tanto no primeiro momento quanto no segundo se fala da alegria. No primeiro, o que transparece é a forma mais simples e verdadeira de alegria. Pois existirá uma forma mais autêntica de se pensar na alegria, ou mesmo de celebrá-la e vivê-la no dia a dia, do que evocar a imagem de um mundo no qual a ordem das coisas seja a mais natural possível, tudo "igual ao igual"? Aliás, há alguma ordem no mundo que consiga escapar à natural?

No segundo, quer se entenda assim, quer não, parece-me que se está exatamente a entender de forma clara e profunda a ordem natural. Para se viver a alegria tem-se de ficar "alegre por dentro, mesmo com tudo de ruim que acontecesse, alegre nas profundas". Porque bom e ruim são apenas pontos de vista, perspectivas. O que nos parece ruim nalgum momento pode vir a se revelar a melhor coisa que já nos aconteceu. Obedece-se aí também à ordem natural das coisas.
Não lhes parece?

quarta-feira, 11 de março de 2009

O livro do mês

Ocorreu-me algum tempo depois de começar as postagens neste espaço que talvez fosse uma boa idéia selecionarmos periodicamente um livro para a leitura compartilhada. Isto é, algo como "o livro do mês" na Sala de Leitura. Ou "o livro da vez", por assim dizer.

O que vocês acham?

Compartilharíamos, assim, a leitura de um livro a cada mês, por exemplo. O que não significa limitar a leitura de ninguém a um só livro, é claro. Minha sugestão é que comecemos com a leitura de Relato de um Certo Oriente, o primeiro livro de Milton Hatoum, que estou pensando em ler há já algum tempo.

Alguém tem alguma outra sugestão para começar?

terça-feira, 10 de março de 2009

Palavras para dizer, para começar

Parece-me que estamos prontos para dar início. Talvez ainda haja alguns ajustes a serem feitos em relação aos comentários mas acho que podemos fazer isso ao longo das trocas que certamente vão se dar por aqui.

Comecemos com Marie Cardinal, escritora argelina que escreve em francês, nascida em 1929 e "autora de dez romances de grande sucesso na França, em outros países da Europa e nos Estados Unidos", de acordo com uma das orelhas de seu livro Palavras para dizer, publicado no Brasil pela editora Trajetória Cultural, em 1990. E, até onde sei, o único de seus livros publicados aqui. Um livro maravilhoso e provavelmente muito difícil de ser encontrado hoje, dado o tempo que nos separa da data de sua publicação.

O livro é um relato autobiográfico de sete anos de análise da autora que "encontra as palavras para narrar de forma envolvente, sem medo o que antes considerava impossível". De acordo com suas próprias palavras na primeira orelha do livro, "A análise não pode ser escrita. Seriam necessárias milhares de páginas para exprimir infinitamente o nada... a matéria em gestação, a gestação do pensamento..."

Ajudada pela beleza da tradução de Wanda Caldeira Brant, para a língua portuguesa, parece que, de algum modo, ela conseguiu. O que fez Ingmar Bergman dizer: "Um dos livros mais extraordinários que já li. Jamais poderia ter sido escrito por um homem". Vale a pena ler alguns trechos:

"... fico sempre maravilhada frente ao admirável trabalho que se opera entre o consciente e o inconsciente. Abelhas laboriosas. O inconsciente indo procurar, nas profundezas da vida, as riquezas que me eram próprias, colocando-as numa margem de meu sono, e a consciência, na outra margem, de longe, inspecionando a novidade, apreciando-a, deixando-me senti-la ou rejeitando-a. Assim, às vezes irrompia em minha realidade uma verdade fácil de compreender, simples, clara, mas que só me aparecia quando eu estava em condições de acolhê-la. Meu inconsciente, há muito tempo, tinha preparado o terreno, mostrando-se à consciência, aqui e ali, por palavras, imagens, sonhos nos quais não prestara atenção. Até o dia em que, amadurecida para receber a nova verdade, podia percorrer o caminho que em poucos segundos levava a ela. Isso tinha acontecido em relação à minha violência, que só enxerguei no momento em que já podia suportá-la." [p.226]

"... Silêncio, porque o essencial está expresso." [p.229]

"Achava que as palavras podiam ser minhas aliadas ou minhas inimigas, mas que de qualquer forma eram estranhas para mim. Eram utensílios fabricados há muito tempo e colocados à minha disposição para me comunicar com os outros. (...) Os homens tinham inventado milhões de palavras... que exprimiam o universo em sua totalidade. Nunca tinha pensado nisso, nunca tinha dado conta de que toda mudança de palavras era um fato precioso, representava uma escolha. As palavras eram estojos, todas continham uma matéria vital.
"As palavras podiam ser veículos inofensivos, carrinhos elétricos de diversas cores que se trombavam na vida diária, soltando feixes de faíscas que não machucavam.
"As palavras podiam ser partículas vibráteis animando a existência ou células realizando fagocitose, ou glóbulos formando uma liga para engolir, com avidez, micróbios e rechaçar as invasões de corpos estranhos.
"As palavras podia ser feridas ou cicatrizes, podiam parecer um dente estragado num sorriso aberto.
"As palavras podiam ser também gigantes, rochas enfiadas profundamente na terra, sólidas, graças às quais era possível atravessar cachoeiras.
"Enfim, as palavras podiam ser monstros, os SS do inconsciente, detendo o pensamento dos vivos nas prisões do esquecimento." [p.231]

"... As palavras, esses estojos de vida, estão elas próprias contidas, quando escritas, nos estojos das letras. Cada tipo de caractere tem um estilo próprio que comunica à palavra que grafa e à matéria que está na palavra. Cada povo inventa caracteres com os quais se parece. Os alemães têm alfabetos pesados e enérgicos feitos para textos fortes, análises rigorosas. Os ingleses têm letras precisas e loucas, feitas para a liberdade bem calculada. Os americanos têm caracteres novos e tecnocráticos feitos e pensados por robôs. Os latinos têm caracteres bonitos feitos para a sutileza, o amor e as lágrimas..." [p.236]

Alguém já leu? Quer comentar? Há outro techo que despertou atenção? Que lhes parece? Se alguém ficar interessado, posso emprestar o exemplar que tenho. Mas a devolução é obrigatória.

quinta-feira, 5 de março de 2009

Abertura e apresentação da Sala

Por onde começar? Alguém tem alguma sugestão?

Tens um autor preferido? Um livro preferido? Vários autores? Vários livros?

Qual é tua/nossa capacidade de leitura? Quantos livros podemos ler ao longo de nossa vida? Um? Uns poucos? Vários? Muitos?

Para começar, pode-se dizer que a leitura é um hábito a ser desenvolvido. Mesmo que não o tenhamos adquirido em nossa infância, o hábito da leitura é como outro qualquer, depende de um pequeno esforço diário. Uma escolha. Uma escolha que pode nos trazer enorme alegria, uma escolha que normalmente nos coloca em contato com um mundo de belezas muito mais impressionantes do que jamais podemos perceber absorvidos na rotina de nossos dias. Quem tem muita resistência, pode começar dedicando não mais do que cinco minutos diários. Mas de forma decidida, honrando a decisão. Sem criar desculpas para não cumprir a tarefa. Logo, logo, com a escolha certa, vai se perceber querendo mais, dando mais. E, é claro, recebendo muito, muito mais.

É importante que busquemos começar com livros que tratem de assuntos que nos interessam e que, ao despertarem nossa curiosidade, prendam a atenção. Estes, sem dúvida, logo vão revelar aspectos desconhecidos de nós mesmos. Seja pela forma como foram escritos, seja pela riqueza de detalhes, se isso nos chama a atenção, seja pela nobreza de seus personagens, seja pela beleza das imagens que o texto evoca, seja porque tratam da "verdadeira" história de alguém que viveu, ou vive, neste mundo, como nas biografias, ou autobiografias, ou nos livros de história, ou de reportagens, ou de viagens. Enfim, às vezes basta uma frase para nos prender a um livro e nos fazer querer continuar a leitura sem interrupções - o que nem sempre é possível. Outras, é o comentário de alguém, que leu e gostou. Outras ainda, é a indicação de alguém cuja opinião nos é cara. E, em alguns casos, existe também a necessidade, para a atualização profissional, para se atender a um currículo de estudo, para se completar um curso, ou para se esgotar determinado assunto.

No meu caso, apenas para ilustrar, comecei a ler desde pequeno, acho que aos quatro ou cinco anos já estava alfabetizado. Mas, inicialmente, lia apenas aquelas coisas da escola, as lições, a "cartilha", da qual nem me lembro. Creio que a partir dos oito ou nove, até antes talvez, comecei a ler gibis - gosto de quadrinhos até hoje - e revistas de fotonovelas. Alguém lembra das revistas Capricho, Ilusão, Noturno, Grande Hotel, entre outras? Minha avó materna costumava ler e meus tios, mais velhos, compravam regularmente os títulos disponíveis nas bancas para ela. Pelo que me lembro, era seu único hobby, além do de escutar, nas madrugadas, desde muito antes das seis horas da manhã, as estações de rádio de São Paulo, que transmitiam programas com música sertaneja. Houve um tempo em que o rádio também transmitia as famosas radionovelas, que tinham uma audiência enorme. Houve também um período em que eu lia todos aqueles livrinhos, do tipo livro de bolso, com historinhas do Velho Oeste e de espionagem, além de uns poucos que faziam parte das exigências da escola. À época da faculdade, lia bastante por exigência do curso de Letras e, depois, houve também um tempo em que, ocupado com uma atividade comercial, lia apenas esporadicamente. De uns quinze anos para cá, porém, retomei o hábito com vontade. Para ler algo como dois ou três livros por mês. Às vezes mais, às vezes menos. Ainda a título de curiosidade, leio, há muitos anos, sempre mais de um livro ao mesmo tempo. Porque, dependendo de uma série de fatores, há sempre um que "casa" com o estado de espírito de um determinado momento e outro - ou outros - que podem ser abertos para atender a estados diferentes. Por exemplo, às vezes, o dia pede que leiamos uma poesia. Ou várias. De um mesmo autor. Ou não.
Às vezes, estamos mais "filosóficos", então é outro tipo de leitura que cabe. Outras, precisamos alegrar o espírito, vamos ler então textos mais leves, bem-humorados, irreverentes. E assim por diante.

Finalizando esta introdução, vou usar apenas uma citação de um grande pensador do passado, Erasmo [não o parceiro do Roberto], que revela sua paixão pelos livros na frase seguinte: "Quando consigo um pouquinho de dinheiro, compro livros; e se sobrar algum compro comida e roupas".