Há dias ensaio os passos para entrar de novo nesta Sala de Leitura, já entregue às traças e a outros insetos apreciadores de livros, sem mencionar as aranhas que já teceram várias de suas teias e esperam pacientemente suas presas incautas.
Livros que li desde a última passagem por este espaço? Desde o último registro, em junho? Vejam só, junho! Parece-lhes pouco? A mim parece uma eternidade. Apesar de não ter estabelecido nenhuma periodicidade para as postagens neste blogue, imaginava que o prazer de falar de livros, de leituras, me faria frequentar mais amiúde este lugar.
De qualquer sorte, eis-me aqui mais uma vez. E não vou falar do que li durante esta longa ausência, ou do que estou pensando em ler. Nem do que, de fato, leio presentemente. Desta vez vou apenas lhes presentear com um excerto de Guimarães Rosa, a respeito do poder. Sim, a respeito do poder. O poder pessoal, do qual abrimos mão quando nos entregamos às emoções dos sentidos sem atentar para aquilo que queremos, de verdade. Sem prestar atenção ao que fazemos com nós mesmos. O texto é do Grande Sertão: Veredas e trata de um momento de reflexão de Riobaldo, ao narrar sua estória a seu interlocutor. Assim:
De que de uma feita, por me valer, eu entendi o casco de uma coisa. Que, quando eu estava assim, cada de-manhã, com raiva de uma pessoa, bastava eu mudar querendo pensar em outra, para passar a ter raiva dessa outra, também, igualzinho, soflagrante. E todas as pessoas, seguidas, que meu pensamento ia pegando, eu ia sentindo ódio delas, uma por uma, do mesmo jeito, ainda que fossem muito mais minhas amigas e eu em outras horas delas nunca tivesse tido quizília nem queixa. Mas o sarro do pensamento alterava as lembranças, e eu ficava achando que, o que um dia tivessem falado, seria por me ofender, e punha significado de culpa em todas as conversas e ações. O senhor me crê? E foi então que eu acertei com a verdade fiel: que aquela raiva estava em mim, produzida, era minha sem outro dono, como coisa solta e cega. As pessoas não tinham culpa de naquela hora eu estar passeando pensar neles. Hoje, que enfim eu medito mais nessa agenciação encoberta da vida, fico me indagando: será que é a mesma coisa com a bebedice de amor? Toleima. ... na ocasião, me lembrei dum conselho que Zé Bebelo, na Nhanva, um dia me tinha dado. Que era: que a gente carece de fingir às vezes que raiva tem, mas raiva mesma nunca se deve de tolerar de ter. Porque, quando se curte raiva de alguém, é a mesma coisa que se autorizar que essa própria pessoa passe durante o tempo governando a ideia e o sentir da gente; o que isso era falta de soberania, e farta bobice, e fato é. (...) Entendi. Cumpri. Digo: reniti, fazendo finca-pé, em forças para não esparramar raivas...
terça-feira, 29 de setembro de 2009
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Bonito excerto! Um pouco a propósito, gostaria de sugerir a leitura de JESUSALÉM de MIA COUTO, um grande escritor da nossa língua, e que, nessa obra retrata bem o que fica para quem decide alimentar as raivas e as magoas. A opção é sempre nossa: viver presos a emoções negativas e que nos prejudicam ou viver em liberdade e amor.
ResponderExcluirWelwitschia, querida,
ResponderExcluirObrigado por sua presença e sugestão. Não lembro de ter visto tal título de Mia Couto anteriormente na relação de livros dele que temos publicados cá no Brasil.
Vou procurar e ler, com certeza. Gosto muito do que ele escreve.
Essa é a última obra de MIA, foi publicada em Julho cá em Portugal.
ResponderExcluirAh... obrigado, querida. Imaginei algo parecido, porque consultando a internet e os títulos todos de Mia publicados aqui no Brasil, não há referência a tal livro.
ResponderExcluirEncontrei no google a notícia do lançamento de Jesusalem em Portugal.
Vou aguardar sua publicação por aqui. A não ser que algum(a) amigo(a) português resolva me trazer o livro antes.
Obrigado.
Ha, ha, ha... veja só como são as coisas. E os equívocos a que estamos sujeitos... Acabo de descobrir que o último livro de Mia Couto, publicado aqui com o título Antes de nascer o mundo, é o mesmo Jesusalém que vocês vão ler, ou já leram, aí. Já iniciei a leitura. Depois comento.
ResponderExcluirPor estes motivos é que eu prefio sempre ler as obras nas suas linguas originais. Por melhor que seja a tradução está lá sempre a visão do tradutor. Aqui não é o caso, mas assemelha-se com a versão do titulo. Tens a sorte de ser tradutor, eu também gostava de dominar mais linguas.
ResponderExcluirBem, bem... neste caso não houve prejuízo nenhum para a leitura. A única coisa que mudou foi o título. O português utilizado é o mesmo de Moçambique que, acredito, também seja o mesmo publicado aí em Portugal. Estou gostando muito.
ResponderExcluirQuanto a ser tradutor e quanto ao que você diz, sem dúvida alguma sempre é muito melhor ler no original. Principalmente porque, em geral, em qualquer texto, em qualquer língua, algumas expressões e usos da linguagem são intraduzíveis.
Entretanto, como já não é tão fácil a gente dominar nem mesmo a própria língua, na falta da possibilidade de se ler o original, melhor ler-se a tradução [principalmente quando feita por tradutor competente] do que não ler. Você não acha?